Saúde

Rara e silenciosa, 'doença do beijo salgado' afeta 49 em MS e desafia diagnóstico precoce

O número real de pacientes pode ser maior, já que muitos portadores do gene da doença não apresentam sintomas quando herdam apenas uma cópia

5 SET 2025 • POR Redação/EC • 07h56
Neia e filho registraram momento emocionante ao receber novo medicamento (Arquivo pessoal)

Nesta sexta-feira (5), a luta pelo diagnóstico e tratamento adequado da fibrose cística, conhecida popularmente como “doença do beijo salgado”, ganha destaque com o Dia Nacional de Conscientização e Divulgação da Fibrose Cística.

A condição rara atinge, atualmente, 49 pacientes em Mato Grosso do Sul. No entanto, o número real pode ser maior, já que muitos portadores do gene da doença não apresentam sintomas quando herdam apenas uma cópia.

Para Néia da Silva, a campanha de conscientização do Setembro Roxo carrega um significado de vivência e luta pessoal pela garantia dos serviços de saúde. Ela quase perdeu o filho, Heinz Peter, devido a um diagnóstico incorreto logo após o nascimento, em Campo Grande.

Em 2025, Heinz apresentou sintomas típicos, como o acúmulo de secreções nos pulmões. Porém, o teste do pezinho não detectou a condição e o médico da família recomendou apenas tratamento para problemas respiratórios e digestivos.

‘Achei que meu filho ia morrer’

Diante das sequelas irreversíveis, Neia decidiu deixar Campo Grande e mudar-se para Belém (PA), quando o menino completou dois anos. Abandonou o emprego e a família na saga de salvar o filho.

“Muito assustador, achei que meu filho ia morrer. Ficamos por anos lá [Belém], onde conheci mais sobre a doença. Por exemplo, meu filho tem a mutação mais comum, a Delta F508 (ΔF508); tem os dois órgãos afetados, pulmão e pâncreas”, descreve.

Após esse período, ela retornou à Capital para fortalecer a luta pelo diagnóstico precoce e tratamento adequado. Hoje, integra a ASMFC (Associação Sul-Mato-Grossense de Fibrose Cística). “[Voltei] não só para meu filho, mas para outras crianças que têm o mesmo problema”.

Neia e filho registraram momento emocionante ao receber novo medicamento (Arquivo pessoal)

Tratamento pelo SUS

Segundo a SES (Secretaria de Estado de Saúde), 49 pacientes estão cadastrados em 22 municípios e recebem medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, na Casa da Saúde.

Os tratamentos seguem protocolos específicos do Ministério da Saúde, garantindo o acesso a medicamentos essenciais para o controle da doença e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes.

Entre os medicamentos fornecidos estão:
• Tobramicina 300mg/5ml (solução inalatória)
• Alfadornase 2,5mg
• Elexacaftor 50mg / Tezacaftor 25mg / Ivacaftor 37,5mg + Ivacaftor 75mg
• Elexacaftor 100mg / Tezacaftor 50mg / Ivacaftor 75mg + Ivacaftor 150mg
• Ivacaftor 150mg
• Pancreatina 25.000 UI
• Pancreatina 10.000 UI

Neia acrescenta que, desde o ano passado, o Trikafta — um medicamento de tripla terapia para fibrose cística — já integra o tratamento de pacientes no Brasil, após registro pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

“O Trikafta tem na composição o Elexacaftor, Tezacaftor e Ivacaftor. Tem alguns pacientes que não são elegíveis, por causa das mutações genéticas; existem mais de 500 mutações diferentes. Esse medicamento, conforme a bula, é para a mutação mais comum: delta F508, que tenha, pelo menos, um dos alelos do cromossomo defeituoso”.

Poucos conhecem a doença

Apesar de ter um mês dedicado à conscientização desde 1989, o desconhecimento sobre a fibrose cística ainda é grande. Michelle dos Reis Fernandes, de Dourados, enfrentou uma verdadeira peregrinação por postos de saúde para conseguir tratamento ao filho, que é ostomizado.

“Meu filho começou o primeiro tratamento em Campo Grande; ele estava em estado crítico de desnutrição. Ele apresentou sintomas no parto. Teve que fazer uma lavagem às pressas, pois tinha muito catarro. Em casa, ele perdia muito peso quando mamava, além de falta de ar. Na época, trabalhava com um pediatra, que falou que poderia ser fibrose cística, mas em Dourados não havia nenhum caso registrado. O exame do pezinho confirmou”.

“Eu não conhecia a doença e minha maior luta em Dourados é essa: fazer as pessoas conhecerem. Em Dourados, poucos têm conhecimento ou se interessam em saber sobre”.

Michelle luta para que o conhecimento sobre a doença torne uma realidade em Dourados (arquivo pessoal)

Doença do beijo salgado

O nome popular da fibrose cística se deve à característica do suor, mais salgado que o normal, deixando a pele com sabor perceptível, sobretudo em dias quentes ou de intensa transpiração. Assim, a condição pode ser notada ao beijar a pele de uma pessoa com a doença.

A fibrose cística já foi chamada de mucoviscidose, em razão do catarro espesso que se acumula nos pulmões. Esse muco pode causar inflamações e infecções recorrentes, como pneumonia e bronquite.

Segundo o Ministério da Saúde, a doença é causada por uma mutação no gene CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator), localizado no cromossomo 7. Essa alteração resulta na produção de uma proteína defeituosa, que não cumpre sua função adequadamente.

“Essa proteína desempenha um papel crucial na regulação dos íons. Ela reduz a excreção de cloreto e aumenta o influxo intracelular de sódio para manter o equilíbrio eletroquímico, além de afetar a movimentação de água devido à sua ação osmótica. Isso resulta em desidratação das secreções mucosas, aumento da viscosidade do muco e obstrução dos ductos, que desencadeiam uma resposta inflamatória”, explica a entidade.

O muco pode ser de 30 a 60 vezes mais espesso que o normal, o que leva ao bloqueio das vias respiratórias. Além disso, pode obstruir o trato digestivo e o pâncreas, causando problemas enzimáticos, como a incapacidade de algumas enzimas chegarem ao intestino. Isso torna a fibrose cística uma doença sistêmica, que compromete diversos órgãos e funções do corpo.

Cresce número de pacientes em MS

Dados da SES mostram que, nos últimos cinco anos, o número de pacientes cadastrados saltou de 32 para 49 em Mato Grosso do Sul. A doença, sem cura, é considerada pelo Ministério da Saúde a doença rara mais comum do país em incidência.

Segundo a pasta, uma a cada 25 pessoas é portadora do gene mutante, ainda que não desenvolva a doença.

O diagnóstico é complexo, já que os sintomas podem variar e se confundir com outras condições, como asma ou bronquite. A manifestação multissistêmica, a diversidade de mutações e a gravidade variável dos sintomas dificultam a detecção, que muitas vezes só ocorre na adolescência ou idade adulta.

Sintomas mais comuns:

• Tosse crônica
• Suor mais salgado que o normal
• Pneumonias de repetição
• Falta de ar
• Diarreia
• Dificuldade para ganhar peso e altura

Sem cura, mas com tratamento

Existem três formas de diagnosticar a doença: o teste do pezinho, o teste genético e a avaliação clínica. Como é uma condição genética, presente desde o nascimento, compromete progressivamente a qualidade de vida e pode levar à morte precoce de jovens que não seguem o tratamento corretamente.

A conscientização, no entanto, tem salvado milhares de vidas. Neia se emociona ao falar sobre o filho, hoje adulto.

“Eu tenho muito orgulho dele, pois com toda rotina diária de tratamento ele não desiste de se superar e se vê como um cidadão produzindo para a sociedade”, conclui.

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