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Promotor de Justiça de Coxim emite carta após ser citado em vídeo

11 DEZ 2017Por Paulo Ricardo13h:20

O promotor de Justiça Marcos André Sant’Ana Cardoso, da 1ª Promotoria de Justiça de Coxim, repassou uma carta aberta para a imprensa nesta segunda-feira (11), em resposta a um vídeo que circula pelas redes sociais, onde um funcionário público coxinense protesta contra a atuação do Ministério Público Estadual (MPE) no município.

Confira na íntegra a carta:

Circula nos grupos de whatsapp e redes sociais um vídeo em que um cidadão coxinense, visivelmente irritado, protesta veementemente contra a atuação da 1ª Promotoria de Justiça de Coxim no que se refere à recomendação encaminhada ao prefeito Aluizio São José para que este procedesse à extinção das situações jurídicas de desvio de função, visando regularizar o funcionalismo público municipal.

No vídeo, o cidadão, que no momento da redação desta carta, desconheço nome e qualificação, informa ser servidor público e se mostra contrário à possibilidade de ser obrigado a retornar a cumprir as atribuições do cargo para o qual foi aprovado em concurso público. Além disso, reclama de atrasos no pagamento das remunerações aos servidores públicos e revela seu desagrado com a falta de pagamentos da contribuição patronal devida pelo município ao sistema previdenciário municipal, dívida que já supera os quinze milhões de reais.

Imperioso sublinhar que o aludido cidadão está a exercer o direito de livre expressão de seu pensamento, vantagem que é assegurada pela Constituição da República a todos nós brasileiros. O Ministério Público, órgão criado pelo legislador constituinte originário (aquele que criou a Constituição Federal de 1988) para a defesa da sociedade contra os desmandos de quem quer que seja, destinará, sempre, todos os esforços para garantir a todos os brasileiros a possiblidade de seguir exercendo tão valioso direito fundamental, o de livre manifestação do pensar e do falar, vedado do anonimato. Vale lembrar, por oportuno, que a ampla liberdade de imprensa, que se liga à possibilidade de livre circulação de informações, é pilar existencial de qualquer Estado que pretenda ser “Democrático de Direito” e também é valor a ser protegido pelo Ministério Público. Parece coisa simples e useira, o direito de se expressar com ampla liberdade, porém, nem sempre foi assim. A expressão do pensamento, do culto, da crença, da palavra já foi algo restrito, no Brasil, submetidos previamente à intensa sindicância prévia de conteúdo e controle e com consequências graves para aqueles que não se harmonizavam, intelectualmente, com o poder vigente. Em alguns lugares do planeta terra, infelizmente, hoje, dependendo das palavras que se emite ou do pensamento que se cultua, uma pessoa ainda pode ir parar atrás das grades ou embaixo da terra. Assim, quero deixar bem patente que o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul irá sempre trabalhar para assegurar ao senhor, cidadão irritado, o direito de usar as mídias sociais, escritas ou digitais, para dizer, falar e expressar qualquer pensamento que possua, dos mais alegres aos mais sisudos.

Retomando, porém, ao conteúdo do vídeo ora comentado, informo que a 1ª Promotoria de Justiça de Coxim (com atribuições para a defesa do Patrimônio Público e Social, do consumidor, do idoso, do deficiente, das vítimas da violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras) acompanha, atua e fiscaliza, com proximidade e grave preocupação, a atual situação do município de Coxim comentada pelo irritado cidadão. Os salários dos servidores estão sendo pagos com atrasos substanciais; o município abriu mão de pagar a contribuição patronal devida ao sistema previdenciário municipal, o que poderá levar ao colapso dos direitos que devem ser assegurados aos aposentados e pensionistas do município.

A 1ª Promotoria de Justiça de Coxim realizou audiência pública no auditório da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul no dia 24.10.2017. Estiveram presentes diversas autoridades: Prefeito, Procurador-Geral do Município, Secretário de Gestão, Presidente da Câmara Municipal, Presidente do Instituto Municipal de Previdência dos Servidores de Coxim; Presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Coxim e diversos servidores e empregados públicos municipais. O evento foi divulgado em diversos sítios eletrônicos de notícias e ao corpo de funcionários, por meio do sindicato municipal. Uma pena que o cidadão irritado que publicou o vídeo não estivesse presente para falar diretamente às autoridades suas queixas, reclamações e pensamentos.

Na ocasião, foram discutidos todos os objetos da reclamação veiculada pelo írrito cidadão. O argumento central de justificava do município, para o errado preceder de não pagar a folha e a previdência dos servidores, é de que a crise econômica ceifou de tal forma a entrada de recursos monetários nos cofres do erário que se tornou impossível realizar os pagamentos dos salários e da parte patronal da previdência como determina a lei. Ora, diante de assertiva do prefeito, de que não há dinheiro para pagamento, o que cabe à sociedade fazer? A proposta da 1ª Promotoria de Justiça foi de que o Sindicato dos Servidores Municipais e o Instituto de Previdência contratassem, juntos, um serviço de auditoria para analisar todo o orçamento do município (gastos e despesas e entradas de recursos no período em que ocorreram os atrasos) para indicar, objetivamente, onde está havendo desperdícios de recursos públicos (se é que está havendo desperdícios) para, em um segundo momento, retornarmos todos à mesa de negociação com a indicação objetiva e precisa de quais recursos devem ser mensalmente transferidos aos servidores e ao seu sistema de seguridade.

Não só por orientação da lei e do ordenamento jurídico, mas por experiência puramente prática, uma vez que este signatário já labuta na resolução de questões jurídicas por cerca de dezoito anos (como assessor no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, com Delegado de Polícia do Distrito Federal e como membro do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, desde 2013), consigno que a solução de um problema, por meio negociado entre as partes da litígio, é a forma mais eficaz de pacificação social que existe. Levar a questão ao judiciário é dotar um terceiro de poder para intervir em nossa vidas e destinos, sem possuir a certeza absoluta de que a expectativa entregue à decisão, por mais que pareça albergada pela lei, será efetivamente protegida. Cada cabeça uma sentença, diz-se usualmente nas dependências dos fóruns. E, no que diz respeito aos assuntos administrativos do Estado, toda questão levada ao judiciário tende a percorrer a longa via crucis dos intermináveis recursos e instâncias, fato que traslada o eixo de decisão para juízes cada vez mais distantes dos acontecimentos. Ajuizar simplesmente a questão é praticamente abrir mão da oportunidade de solucioná-la com efetividade. É por isso que Sindicato, Instituto de Previdência, Promotoria de Justiça e Poder Executivo Municipal estão, ainda, dialogando sobre os fatos. Acabadas todas as possibilidades de resolução consensual do conflito, certamente, tudo desembocará no judiciário. Há três Inquéritos Civis na 1ª Promotoria de Justiça de Coxim que se debruçam sobre o tema aventado pelo cidadão irritado. A solução exige o complexo esforço para a análise minuciosa do orçamento, das receitas e gastos públicos. Tarefa que não é fácil nem simples. Aliás, o orçamento e boa parte de sua execução estão publicados no portal da transparência de Coxim (que ainda precisa melhorar muito). Qualquer cidadão está legitimado para analisar todos os dados e propor as despesas que devem ser cortadas de onde se economizará os recursos para o pagamento da folha. O Ministério Público está em busca de tais dados.

Mais uma vez, revisitando o conteúdo do vídeo publicado, tenho que são necessárias mais considerações. Como já mencionado, a Constituição da República garante a todos o direito de livremente se expressarem, sem qualquer barreira de censura prévia. No entanto, uma vez que as palavras tenham sido ventiladas no ar, ou lançadas nas marés dos oceanos digitais, como caso em apreço, aquele que se expressou responde por eventual dano material, moral ou causado à imagem de outrem. É o que determina o art. 5º, inciso V da Constituição Federal. Não se pode olvidar, também, que o conteúdo de um determinado discurso pode ensejar a responsabilização do emissor por crime de injúria (quando encaminhe ataque à honra subjetiva de alguém – xingamento); difamação (quando carregue ataque à honra objetiva de alguém, à reputação, com o objetivo de criar sacrificante e desproporcional descrédito perante a opinião de terceiros – atribuir fato ofensivo à reputação de alguém, tal como, dizer que uma determinada pessoa pratica roubos), calúnia (quando se impute crime que se sabe não ter sido praticado pela pessoa caluniada) ou mesmo ameaça, quadra em que se ofende a liberdade individual de outrem, mediante a promessa, à vítima, da prática de mal injusto e grave, por exemplo, a promessa de matar alguém.

Tenho que o exercício do direito de livre expressão, utilizado pelo cidadão irritado no caso em baila, envolveu o uso de expressões que, para além de veicular a ácida e merecida crítica ao estado de coisas que vige em Coxim, no que se refere aos pagamentos dos salários do funcionalismo, ao pagamento da previdência dos servidores, também encaminhou a intenção de causar dor moral, humilhação, malferimento da honra e imagem de pessoas comentadas e também teve o objetivo de fazer nascer medo, por conta da possibilidade de um ataque físico que subtraía a vida de alguma das vítimas. O cidadão que teceu as críticas enveredou-se por caminhos sombrios e que podem repercutir em sua órbita de direitos. A crítica que foi lavrada em relação a conduta das autoridades do município não necessariamente deveria vir acoplada a ataques intensos à dignidade ou reputação das autoridades mencionadas, ou mesmo à promessa indireta de prática de mal injusto e grave, consistente “no encontro com a morte”, como se demonstrará adiante.

Teço um apertado resumo das palavras lançadas no protesto do cidadão coxinense, que estou a comentar.

“A todos os vereadores, se não querem ser criticados, façam as coisas. Tem servidor até com três meses sem receber. Vocês são muito covardes. Eu quero que vocês me processem. Eu vou perguntar para o Promotor porque ele não faz o ladrão do prefeito pagar o dinheiro da nossa previdência. Vocês vereadores não têm moral para falar comigo. Vocês são sem-moral. A justiça não tem moral. As lei brasileiras não têm moral. Aqui em Coxim, a justiça não tem moral. Que moral tem um promotor para mandar o funcionário para suas funções, oitenta funcionários, inclusive eu que estou incluído? Para isso o Promotor é homem. Para isso tem lei aqui em Coxim? O Promotor é machão para que? Para colocar os funcionários em desvio de função na sua função e porque o Promotor não é homem para fazer esse prefeito ladrão a pagar o que ele arrancou de nós lá atrás. Vocês não estão mexendo com crianças. Todo mundo tem medo da justiça, todo mundo tem medo desses bundas moles desses vereadores, todo mundo tem medo desse bunda mole do prefeito; eu não tenho medo de vocês. Volto a insistir e falo e desafio: eu não tenho medo do homem; morte, nós vamos ter que encontrar com essa porra dessa morte um dia, ou hoje ou ano que vem ou daqui dez anos, quem sabe é Deus. Deus é sabedor de tudo, eu não sei de nada, só sei que eu desafio vocês. Está errado isso e aquilo porque não se pode desacatar autoridade: vocês são “autorimerda”. São onze “autorimerda”. Com esse prefeito são doze merdas. Aí o Promotor vem, tem um monte de ações contra o prefeito, o nosso sindicato, o Paulo Monteiro, entrou com um monte de ações contra o prefeito, tem justiça para punir nós, pobres funcionários, mas a justiça de Coxim não tem competência para punir o prefeito. Eu falo com vocês da forma que vocês merecem ser tratados. Tem lei em Coxim para punir a pobreza, para punir funcionários, mas não tem justiça para punir os ladrões? Eu não sei o nome do Promotor que executou esse pedido, vou tratar você de você. O doutor é machão, é homem para colocar os funcionários nos seus lugares mas não está sendo homem, não está executando a lei para punir o prefeito. Eu não vejo justiça para punir esses ladrões, eu vejo justiça para punir um cara trabalhador como eu, preto e pobre, assim como tem outros pobres sendo punidos, vários funcionários que estão em desvio de função mas estão executando seus serviços. Estão trabalhando doutor. Mesmo você colocando todos os funcionários em suas funções o prefeito ainda vai contratar um monte de funcionário daqui três ou quatro meses de novo, porque ele vai contratar todos os cabos eleitorais dele, porque ano que vem é política. Presta atenção doutor. O Promotor é machão para punir funcionários, mas não tem justiça para punir o ladrão do prefeito. Eu trato você é assim mesmo prefeito, é ladrão mesmo. Eu queria que o promotor mandasse a polícia federal investigar a vida do prefeito, a minha vida e a de todos os vereadores. O doutor tem competência para isso? Não? Então deixa todo mundo quieto. Deixa minha vida quieta e dos funcionários quietos. Está dado o recado, a polícia sabe onde eu moro. Talvez o doutor promotor vai ser machão para mandar a polícia me prender porque eu estou falando contra o doutor. E os vereadores eu vou continuar descendo o pau, seus bostas. Vocês não pagam os nossos salários e isso o promotor não vê. Isso aí o promotor não tem competência para ver. A lei é para punir os mais fracos? E os magnatas de colarinho? Vão ficar zombando com a cara do povo? É fácil o doutor mandar vir aqui me prender porque é fácil prender pobre e preto, puta e biscate neste país. O país só tem competência para punir a pobreza, mas para punir os ladrões de colarinho, não tem promotor homem. Não tem juiz homem, machão para punir um colarinho branco. Só surgiu o Mora, o juizão fudidão, ali eu vi homem. Fora isso eu não vejo justiça, uma porcaria de justiça que só tem olhos para a pobreza.

Mais uma vez, repiso, concordo em número, gênero e grau com as severas críticas elaboradas. O sistema de justiça do Brasil possui problemas estruturais e os processos se revelam lentos. Quando se olha para a justiça penal, vê-se que somente pobres e pretos, ou seja, a população mais socialmente vulnerável é que é tocada pela mão de tais leis. Os presídios estão abarrotados de pobres e negros e ainda há pessoas que levantam a voz ou deitam a caneta para afirmarem que o Brasil é um pais em que não existe racismo. O racismo no Brasil, desde a abolição da escravatura, quando os donos de escravos foram indenizados pela perda das propriedades (os escravos eram tidos como coisas), vicejou pujante, forte, saudável. Hoje ele está arraigado na nossa estrutura social e administrativa; é um parasita que impede a concreção do princípio da igualdade, aventado pela Constituição. Nós ainda não encontramos o remédio para ele. O racismo é mal opaco e pouco estudado, a ponto de se ouvir muitas vozes afirmarem que o Brasil é um país com diversos problemas, porém não com este problema, o racismo. Pintam uma sociedade em que há plena aceitação das pessoas, independentemente da cor de sua pele. Ledo engano. O próprio Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, inserido que está na sociedade brasileira, sofre as consequências da estrutura segregadora. Dos cerca de duzentos membros, contam-se nos dedos de uma mão aqueles que podem ser considerados pretos. Senhor cidadão irritado, eu sou um deles. Negro, filho de professora do ensino médio do Estado de Minas Gerais e de técnico em Contabilidade. No entanto, a minha criação e de minhas três irmãs ficou sobre os ombros da minha mãe (que se separou do meu pai quando eu ainda era muito pequeno). Foi com um salário muito abaixo do que se poderia chamar de modicamente razoável que a minha mãe conseguiu inocular em cada filho a noção de que o ato estudar deveria ser, para nós, como o ato de agarrar-se a uma tábua de salvação em meio a um naufrágio. E foi à custa de muito suor, tempo e dedicação que esse negro que te escreve exigiu a beca com a corda vermelha e assento entre os membros do Ministério Público Sul-Mato-Grossense, no ano de 2013, após, é claro, a aprovação em concurso público no qual restaram aprovados menos de 20 candidatos. O meu ideal é cumprir e fazer cumprir, a cada dia, cada vez mais e mais qualitativamente, as leis e a constituição do país. Nada me causa mais angústia do que constatar, como você mesmo já o fez, que o ordenamento jurídico brasileiro tem escolhido, como vítimas preferenciais, pelo menos no que se pertine à clientela do direito penal, a camada mais vulnerável da sociedade e isto inclui obrigatoriamente a cor da pele negra, porque ser negro é, em regra, sinônimo de ser pobre. É por isso que sou defensor assíduo do sistema de cotas, política de ação afirmativa e temporária, que visa a tentar diminuir as diferenças que as famílias, o sistema educacional e mercado de trabalho não conseguem superar por si próprios. O próximo concurso do MPMS resguardará, ainda bem, vagas para negros. A superestrutura da sociedade brasileira não consegue, hoje, formar negros com capacidade educacional a ponto de permitir que disputem as melhores ocupações sociais. Um ou outro consegue alcançar tal objetivo, mas à custa de sacrifício muito maior que os filhos das famílias brancas. Não que os brancos tenham mais propensão ou inteligência que os negros, como já se postulou anteriormente. É que as famílias brancas, em geral, por terem melhores condições econômicas, conseguem ofertar aos seus filhos escolas e condições de preparo intelectual superiores às famílias negras. Chateia-me e me marca muito quando, em audiências, escuto mães e pais dizerem que foram obrigados a trabalhar desde criancinhas e que seus filhos, para não se tornarem vagabundos, também deveriam trabalhar desde a tenra infância e são instados ou obrigados a isso. E muitas dessas famílias entendem que o estudo de suas crianças e adolescentes é algo dispensável ou secundário. O valor do homem estaria somente no trabalho, geralmente manual e porcamente remunerado, que é exercido por cada um. Trata-se, em regra, de gente muito simples e honesta, porém, como já afirmado acima, com a percepção absolutamente nublada, sendo certo que somente a educação de qualidade é capaz de dar a cada homem ou mulher a autonomia consciente de permitir tomar a decisão correta para sua vida, seja para ser um médico, um cantor, um poeta, um lavrador, um carpinteiro ou um gari. Infelizmente, a maioria das famílias que presenciei cultuar a ideia de que o trabalho é a única ferramenta que dignifica o homem, e que deve sobrepujar inclusive a educação, são famílias negras e pobres.

A minha central preocupação com a manifestação publicada no vídeo de protesto diz respeito, como já mencionado linhas atrás, ao excesso praticado. Ao xingar, repetidas vezes, o prefeito de ladrão e os vereadores de autorimerdas e todos eles de bundas moles, a manifestação do cidadão irritado quis simplesmente impingir mal, humilhação, desgosto, tristeza. E certamente conseguiu. É muito provável que os vereadores e o alcaide municipal estejam magoados, descontentes e humilhados com as palavras veiculadas. Ao se xingar ou se atribuir fatos pejorativos a uma pessoa, a lei penal do Brasil considera a prática como crime de injúria, difamação ou mesmo calúnia, conforme o caso. Será que todos os problemas administrativos e fiscais que município atravessa conferem imunidade ao senhor cidadão irritado, para praticar crimes contra a honra? A que título (jurídico) o senhor poderia invocar o direito de ofender, diminuir, magoar e machucar outrem? Porque se diz pobre e preto? É direito das minorias praticar crimes, porque a camada mais rica não é punida a contento pelo judiciário? Em diversos júris que fiz (julgamento popular para o processamento de homicidas), vi-me obrigado a usar a palavra para pedir a condenação de pretos e pobres que praticaram o crime maior: matar alguém. Invariavelmente, os advogados de defesa alegam o fato de somente descer ao banco dos réus pessoas negras e vulneráveis economicamente. Isto é motivo para deixar-se de aplicar a lei? A mim, parece que não, sob pena de se desestabilizar toda a convivência social. “Se a pobreza é a mãe do crime, a ignorância é o pai”. Este é um adágio, cujo autor não me recordo, e que eu costumo usar nos julgamentos. Em que pese a grande maioria da população brasileira ser composta por pobres e mais da metade por pretos e pardos, é pequena a proporção que se enviesa pelo mundo do crime. Ser pobre ou ser preto não é sinônimo de ser criminoso. Portanto, a missão do Ministério Público é fazer com que o direito penal alcance a todos aqueles que tenham extrapolado suas barreiras, seja rico ou pobre, seja branco ou preto, agente público ou político ou não. E pode-se dizer que, graças ao Ministério Público, na atuação referente ao mensalão, à lava-jato e a tantas outras operações de destaque até mesmo internacional, a era de punição de pessoas poderosas foi inaugurada nesta república. Daí o motivo pelo qual o seu excesso poderá resultar em atuação da justiça penal. O fato de o senhor ser pobre ou negro não lhe exime de cumprir a lei, tal como o senhor clama seja cumprida em seu favor. Há de se convir, também, que o processo que apuraria a emissão da injúria tratada nesta carta é bem mais simples do que uma ação que tenha que demonstrar ao judiciário que o prefeito tinha recursos econômicos sobrando em caixa e mesmo assim não quis realizar os pagamentos devidos aos funcionários públicos e seu sistema de seguridade social. Nesse segundo ponto, a análise da conduta exige investigar todas as receitas, as despesas, os contratos administrativas e as escolhas do prefeito que, vale dizer, foi eleito com o voto da maioria dos cidadãos de Coxim. O senhor, cidadão irritado, como membro do corpo de eleitores de Coxim, tem a responsabilidade por ter escolhido o atual prefeito para mais um mandato, não podemos esquecer. Isso também é valido em relação aos vereadores.

Passo a abordar o ponto mais negativo do discurso publicado nas redes sociais que está, aqui, em análise. Escuta-se no conteúdo da publicação a entonação de ameaça de morte, no trecho que se segue: *“Todo mundo tem medo da justiça, todo mundo tem medo desses bundas moles desses vereadores, todo mundo tem medo desse bunda mole do prefeito; eu não tenho medo de vocês. Volto a insistir e falo e desafio: eu não tenho medo do homem; morte, nos vamos ter que encontrar com essa porra dessa morte um dia, ou hoje ou ano que vem ou daqui dez anos, quem sabe é Deus.”*

Ao lançar desafio ao prefeito e vereadores, dizendo que não tem medo de encontrar a “porra” da morte, porque todos nós vamos ter que se deparar com ela em algum dia, a meu ver resta evidente a prática do crime de ameaça. A lei penal brasileira pune a ameaça porque se trata de infração penal que afeta a liberdade individual de cada ser humano, causa medo, uma sensação perene e pesada de angústia. O receito de que se vai sofrer algum mal grave e injusto.

Ora, nenhuma das condutas praticadas pelo alcaide ou vereadores, nesta cidade de Coxim, embora reprováveis, justificaria, do ponto de vista do direito, a prática de homicídio contra eles. A mim causa espécie ímpar o fato de o cidadão irritado exigir o adimplemento de todos os seus direitos (receber em dia, haver o recolhimento da parte da contribuição patronal de sua previdência etc) porém, querendo estar, ele mesmo, em ambiente imune ao próprio ordenamento jurídico, que lhe proíbe empregar ameaças. Visando eliminar o que entende ser ilícito contra si, o cidadão pratica infrações penais chegando ao extremo da ameaçar de morte o prefeito e vereadores. É de se noticiar ao cidadão que, qualquer menoscabo aos seus direitos, acaso não houvesse resolução amigável, deveria ser levada ao judiciário. Cidadão, você pode e deve procurar a Defensoria Pública, acaso não tenha recursos financeiros para contratar algum advogado para, individualmente, exigir em juízo que se faça prevalecer sua pretensão de receber sua remuneração em dia ou de ter sua contrapartida previdenciária devidamente depositada. A solução judicial de tal demanda, é bom dizer, serviria de qualificado fundamento para a atuação do Ministério Público, acaso não se consiga, amigavelmente, afastar as ilegalidades afirmadas no vídeo de protesto. Por outro lado, o derramamento do sangue, a punição física para a satisfação de sentimento de vingança, a abreviação da data, por vontade do cidadão irritado, do encontro que todos temos marcado com a morte não é conduta admitida, mesmo no desespero daquele que se vê diminuído em razão da negativa de seus direitos de servidor. Informo, portanto, que este Promotor de Justiça negro recebeu com preocupação o vídeo e a respeito dele tomará medidas administrativas, requestando a instauração de procedimento administrativo disciplinar visando ao processamento e julgamento do desvio funcional que a mim parece patentemente cometido. É que o estatuto dos servidores públicos de Coxim impõe a todos os funcionários o dever de lealdade para com a administração e urbanidade. No caso, a crítica (e tal possibilidade sempre será protegida pela atuação do MPE) ultrapassou os limites do razoável, feriu o ordenamento penal brasileiro e configurou humilhação gratuita e ameaça de morte. Essa quadra é passível de punição administrativa.

Como fui pessoalmente citado, evitarei o manejo de qualquer ação penal ou medida cautelar penal em relação aos fatos em apreço, tendo em vista que pretendo resguardar a este cidadão a percepção de que qualquer providência judicial, acaso seja promovida, o será por membro do Ministério Público com absoluta imparcialidade.

Senhor cidadão, na ocasião em que a 1ª Promotoria de Justiça recomendou que fossem extintos os casos de desvio de função na estrutura administrativa de Coxim, não o fez para promover perseguição a servidores pobres e vulneráveis ou para mostrar macheza ou virilidade, como denotado no vídeo de reclamação que foi publicado. O que se pretende é necessariamente fazer cumprir as leis e a Constituição e proteger o direito daqueles que se sagraram aprovados em concurso público realizado pelo município de Coxim. A Constituição Federal estabelece uma importante diretriz chamada de princípio do concurso público. O acesso aos cargos públicos é disponibilizado a todos, desde que o façam por meio de provas ou de provas e títulos, em regra. Esse mecanismo de acesso aos postos de trabalho públicos tem o objetivo de evitar a personalização da atuação da administração, impedindo que os gestores possam escolher quem bem entenderem para ocupar os cargos públicos. Acaso o senhor tenha sido aprovado para o cargo “X” e esteja trabalhando em desvio de função no cargo “Y”, tenho a obrigação de recordá-lo que o acesso ao cargo “Y” somente pode ser feito por meio de concurso público. Acaso fosse permitido que o senhor se mantivesse nessa função desviada, cargo “Y”, alguma pessoa aprovada no concurso público vigente para o cargo “Y” não poderia ser nomeada. Fechar os olhos para o desvio de função é deixar de dar proteção ao princípio do concurso público e também abrir mão de assegurar o direito à posse daqueles aprovados, vez que muitos dos cargos disputados estariam indevidamente ocupados. Qualquer ilegalidade praticada pelo alcaide e vereadores (denunciadas no seu vídeo) não faz nascer ao senhor o direito de também ter resguardada situação patentemente inconstitucional. A regularização da estrutura do funcionalismo público permitirá o nomeação e convocação dos aprovados, o fortalecimento do sindicato e também dos cofres do instituto de previdência, visto que será ampliado o contingente de servidores. Tudo está interligado. É por isso que, na audiência pública, restou também informado que o Ministério Público Estadual atuaria para normalizar o funcionalismo público.

Finalizo esta carta, que já se alonga muito mais que o recomendável, baixando no papel as seguintes e últimas reflexões. O cidadão irritado afirmou, por diversas vezes, que o Promotor foi machão de solicitar a extinção dos casos de desvio de função, porém não foi homem de enfrentar o prefeito, no que diz respeito aos pagamentos dos servidores. Asseverou que o único homem e macho na justiça brasileira é o juiz Moro. Ora, da mesma forma que o cidadão reclamou que a justiça somente pune pretos e pobres, não conseguiu, nessa infeliz adjetivação, esconder seu próprio racismo em relação ao papel da mulher na sociedade contemporânea. É preciso recordar que este signatário, quando atua em face do prefeito, dos vereadores, de criminosos ou mesmo contra o interesse de grupo de servidores não o faz por ser “machão” ou “homem”. Não se trata de exibição de virilidade. Simplesmente, cuida-se de atuação funcional fincada e permeada pelas regras e princípios da Constituição da República. Assim como um médico não precisa ser machão para realizar uma cirurgia, também o Promotor de Justiça não precisa ser “Homem” para atuar em busca da transformação social. Em Coxim há três promotorias de justiça e uma delas, a segunda, é titularizada por uma mulher, extremamente inteligente e competente. Integram o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul diversas promotoras de justiça, a grande maioria delas muito mais capacitadas do que a maioria da população brasileira. Eu tenho sentido o peso e a angústia da responsabilidade de dividir o título de Promotor de Justiça com as colegas que me acompanham no Ministério Público brasileiro, porque a quase totalidade delas, além de serem mães, companheiras, discriminadas pela estrutura social vigente neste país, conseguem se desincumbir de todas as suas graves e pesadas tarefas com imensa capacidade, elevando assim o prestígio que o Ministério Público Brasileiro desfruta na sociedade. Muito da minha dedicação é com o objetivo de não decepcionar as minhas colegas, na tentativa de manter o alto nível do trabalho por elas realizado diariamente, a despeito de toda dificuldade enfrentada. Lembro que a atual Procuradora-Geral da República é mulher. Acaso o senhor, cidadão coxinense, enfrente problemas penais, recordo que será processado e julgado pela juíza penal da cidade de Coxim. É bom que se relembre que dois, dentre os três juízos desta cidade do Pé-de-Cedro são mulheres. Portanto, ao afirmar no vídeo que o Promotor não foi machão ou homem para ajuizar ação em face do Prefeito, senhor cidadão, fica evidente que você comunga da ideia racista de que as virtudes da coragem, determinação, valentia, bravura, seriam inerentes somente ao sexo masculino, e não ao feminino, o que é uma absoluta inverdade. É seu dever repensar suas palavras, neste ponto específico, e destinar às mulheres parcela maior de respeito. E, no que diz respeito ao alcaide, devo lembrar que foi ajuizada ação de improbidade administrativa em relação ao mau estado de conservação da Concha Acústica, apelidada, pejorativamente, em Coxim de “Concha Aquática”, o que poderá resultar em punição.

Encerro colacionado as palavras de Voltaire, lançadas em momento da civilização bem diverso do presente, porém ainda pleno nos dias atuais: “Posso não concordar com nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei, até a morte, o direito de dizê-las.” Parabenizo-o pela manifestação da crítica e preocupação com a coisa pública. No entanto, sem que haja censura prévia, noticio que será cobrada juridicamente, com razoabilidade e proporcionalidade, à luz do ordenamento normativo brasileiro, o fato de o senhor ter extrapolado o uso da palavra e assim seguido para os campos lúgubres da ofensa, do ferimento à dignidade e da ameaça de morte.

Domingo, 10 de dezembro de 2017.

MARCOS ANDRÉ SANT’ANA CARDOSO

Promotor de Justiça titular da 1ª Promotoria de Justiça da comarca de Coxim.

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